quinta-feira, 27 de maio de 2010

Artigo: Na praia de Redonda o mar é de menino

Publicamos abaixo a Crônica de Mari Cecília intitulada "Na praia de Redonda o mar é de menino"

Na praia de Redonda o mar é de menino. Os meninos são os peixes.

Por Mari Cecília
                            
A nova escola foi inaugurada. Nunca a pequena vila de pescadores sonhou com um prédio com tanto estilo! Oito salas de aula, secretaria com grandes armários, banheiros para homens e mulheres, cantina toda no piso, uma sala para biblioteca, e outra até para informática! E os filhos e filhas de pescadores aprenderiam agora informática! Para que - perguntavam muitos? Mas a satisfação era tanta que as novas possibilidades eram deixadas “no ar” e tudo era um “vir a ser”, sem muitas certezas. 

A terra onde vive e as artes da pesca é um patrimônio para o esse povo, bem como os botes veleiros fundeados em sua bela enseada. Redonda sempre amanhece com as velas brancas abertas em direção ao mar. Os pescadores tratam de ajeitar os apetrechos para que a carreira seja boa. Há um desafio no ar – dependendo do vento – para afirmar qual a melhor embarcação e qual o mestre mais reconhecido. Essas disputas fazem parte da vida dos homens que pescam; com suas embarcações e as tramas que já começam no porto.

Ao entardecer elas vão apontando uma a uma no horizonte e os olhos dos que estão em terra acompanham essa rotina, que encerra sempre um componente de imprevisão, risco e confiança ao mesmo tempo. Os pescadores sempre vão e vêem. Às vezes um bote vira e é uma grande tribulação: muito material se perde, há o risco do mastro quebrar, rasgar a vela, e ainda o perigo de um acidente mais grave com a tripulação. Em geral a habilidade dos mestres evita os acidentes, e raramente eles acontecem.
Nos alpendres, sentadas em torno das grades de labirinto, as mulheres estão sempre de olhos postos no mar, de onde aguardam a volta de seus familiares; observam os filhos que são criados soltos na praia e sabem de tudo o que acontece na rotina da comunidade. Como elas mesmas dizem: “Esses meninos só vivem no mundo!” E eles crescem com o sentido de que o limite da praia é a sua casa. Esse aspecto é extremamente rico e reflete a qualidade da vida de frente para o mar, com o horizonte sempre à vista, onde o mundo aparece em sua inteireza e amplitude, onde o universo é mais presente.

A sociabilidade desse grupo expressava-se também, através da disposição das casas e dos quintais considerados espaços comuns, pois servem de passagem ou, como dizem os moradores, de “atalho” entre as moradias, para campos comunitários ou para os roçados. A inexistência de cercas promove encontros entre amigos e parentes, e entre pessoas “de fora” que se fazem acompanhar de pessoas do lugar, além de propiciar a troca de informações sobre o trabalho do mar, os plantios, o dia-a-dia na comunidade, as notícias ouvidas no rádio e discussões de toda a natureza.

Esse modo de viver remete ao sentido que têm de família, de casa e do ambiente em que vive. A família para eles, não é nuclear (pai, mãe, filhos), mas todos os parentes formam uma família só; por conseguinte, a casa não tem um papel tão significativo a ponto de ser sua principal referência. Os espaços externos (fora da casa), estes sim, acolhem a todos: o trabalho da pesca realiza-se não só no mar, mas na praia concentrando o cuidado com as embarcações, o remendo das redes, a produção dos apetrechos de pesca. 

A partir do momento em que é introduzida na comunidade a pesca da lagosta há um aumento significativo no número de embarcações. O alto preço do novo produto da pauta de exportações, agora ditado pelo mercado e, sua escassez, cada vez mais produz novas relações entre os pescadores. Surgem, para os moradores de Redonda, necessidades novas intensificando os vínculos com a vida urbana e substituindo a economia de subsistência pela economia de mercado: roupas, utensílios, alimentos, bebidas, televisão e bugigangas de vários tipos fabricadas na cidade. Conseqüentemente, eles têm que produzir cada vez mais, adequando-se constantemente às exigências que se impõem. 

Junte-se a isso a dependência que se instaura na intermediação entre o resultado da pescaria e a venda do produto para os “atravessadores”, renovada à cada ano, onde eles subsidiam a compra das embarcações, dos materiais de pesca, iscas e ranchos, acumulando dívidas dos pescadores e condicionando-os à exclusividade na venda do produto e aos preços regulados por ele. Durante os oito meses da pesca, dificilmente o resultado cobre as despesas com estes insumos, e ele vive precariamente tentando se equilibrar entre as condições gerais do mercado, as suas condições locais e as necessidades domésticas. 

As crianças agora estão a caminho da escola. Suas correrias e idas ao mar para pescar estão sendo limitadas por essa nova necessidade que se impõe de estudar todos os dias do ano. A nova escola é muito atrativa e todos estão muito interessados (assim como os pais na novidade da pesca da lagosta), em ir para a escola e sentar naquelas cadeiras bonitas que em casa não tem. Às professoras cabe a difícil tarefa de manter esses meninos irrequietos sentadinhos e concentrados no soletramento do mundo da palavra escrita, embora eles não entendam a relação com o mundo vivido, de até então: a praia, a fartura de sol e mar, a amplidão do espaço e o amanhecer e anoitecer contínuos. Agora os dias têm semanas, as semanas meses e os meses anos. E há que se terem boas notas para passar de ano na escola!

O que entristece as crianças é que a escola não fala do mar, do sol, das embarcações à vela, nem dos lindos peixes que todas sabem os nomes. Não sabe, ou faz que não sabe, do fato de que seus pais estão agora sempre empenhados em ganhar e gastar dinheiro, principalmente com raparigas e banhos de cerveja na safra da lagosta. A vida parece que está proibida de entrar na escola. E, depois de algum tempo, as crianças caminham mais uma vez para aquele prédio, que já não parece ser tão bonito assim, esperando que a aula acabe logo para que elas possam voltar a viver suas vidas que ficou lá fora.

Nota do Blog

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