domingo, 17 de outubro de 2010

Diário do Nordeste: Artigo - O local que virou ouro

ARTIGO

O local que virou ouro

17/10/2010

*Camila Garcia, Jefferson Sousa e Sheila Nogueira

A zona costeira é uma estreita faixa de transição entre o continente e o oceano. Durante o processo de colonização, nos séculos XVII e XVIII não figurou como um espaço prioritário para a realização de atividades vinculadas aos ciclos econômicos da época. Aparentemente não apresentava solos férteis e água em abundância - a dita "terra de ninguém".


Ainda que ocupando papel econômico secundário, a zona costeira cearense nunca foi desabitada. A presença dos povos indígenas neste espaço é registrada como datando de épocas anteriores à chegada dos colonizadores. Os deslocamentos de grupos em busca de paragens, a exemplo do que aconteceu com os escravos libertos e/ou em fuga, foram consolidando ao longo da costa povoamentos que em sua maioria se conformaram em comunidades pesqueiras.

Afirma-se que a ocupação da zona costeira foi feita por indígenas e negros a margem das disputas econômicas entre colonizadores e metrópoles europeias. O trabalho na pesca elaborou os sentidos culturais e sócio-ambientais expressos na constituição de territórios, marcados pela relação desses povos com a terra e com o mar. Entretanto, o espaço do litoral passa a ser cobiçado por outros sujeitos.

Já no século XX, a partir dos anos 1970, o interesse econômico pela zona costeira começa a ganhar força. É o tempo da "descoberta" do litoral como lugar de constituição de segundas residências, em meio à consolidação do lazer e do turismo como atividades econômicas a serem implementadas na zona costeira cearense. De terra de ninguém, passa a valer ouro.

Um novo ciclo econômico começa a ser desenhado para a zona costeira. Sinônimo de "modernidade", o turismo é apresentado como a "indústria sem chaminé", impulsionadora do desenvolvimento sustentável do Ceará. Com esse discurso inicia-se o processo de construção de um pacote de forças - a reunião dos recursos técnicos, materiais, financeiros e humanos necessários para se levar adiante grandes projetos de desenvolvimento. Isso significa, inclusive, a geração de condições institucionais e jurídicas que deem legalidade à obra.

No início dos anos 90, por meio do Programa de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur) verificam-se significativas quantias de recursos para a chamada infraestrutura turística básica (aeroporto, estradas, saneamento básico) nas cidades consideradas polos de turismo, a promoção internacional de destinos e a formação de capacidade de gestão para agentes público. Construir o "ambiente ideal" para atrair investimentos estrangeiros, sobretudo italiano, português e espanhol.

O turismo chega para os que vivem no litoral como mais um dos vários desafios postos aos povos do mar, um tema ameaçador dos modos de vida das populações que habitam a zona costeira, e que por isso tem sido mobilizador das lutas sociais. Envolve na questão fundiária toda problemática da disputa por territórios e a consequente expulsão de comunidades tradicionais de seus locais de origem, tudo organizado por políticas públicas que são criadas para dar suporte ao desenvolvimento de um modelo de turismo hegemônico que transforma em mercadoria o ambiente natural, as pessoas e suas culturas.

O processo de organização das comunidades pesqueiras é contemporâneo ao surgimento de novos movimentos sociais de resistência no Nordeste no final da década de 1970. No Ceará alcançam maior visibilidade no início dos anos 1980 com a atuação de organizações de pastorais sociais, Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese da Fortaleza e articulação de Fóruns para o enfrentamento dos conflitos fundiários. Mas, ainda hoje, as políticas públicas têm sido reinventadas e os governos continuam subsidiando o capital privado em detrimento da vida comunitária e tradicional na zona costeira.

*Representantes do Fórum de Defesa da Zona Costeira do Ceará, do Instituto Terramar e da Rede Nacional de Advogados Populares


Fonte: Diário do Nordeste

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