domingo, 17 de outubro de 2010

Diário do Nordeste: Povo de amar

CULTURAS EM EXPRESSÃO

Povo de amar

17/10/2010
Emocionada, mulher de pescador conta o drama e o orgulho de ter o mar como horizonte de seu próprio destino
Icapuí. No penúltimo dia de viagem pelo zona costeira do Ceará, com muitas fotos e entrevistas na bagagem, dedicadas a este Caderno Especial, encontro dona Judite da Silva, de 72 anos, no litoral de Icapuí, e sucedo uma das últimas prosas com os povos do mar.


Dona Judite, o que o mar lhe representa? "Meu filho, senta aqui. Olha (aponta para o mar). Tá vendo? Não sei se você vê, mas eu vejo. Porque quando olho pro mar, eu me lembro do meu pai, num dia como esse, voltando com os sacos cheeeios de peixe. Eu lembro do meu finado marido, trazendo o mesmo peixe, trazendo lagosta... E hoje meu filho vai... Mas não é sempre que vem peixe não. Tem vez que não vem. Mas eu não lamento por mim, já tô vivida, tive a minha vez. É pelo filho dele, pela fêmea dele. Porque só ele e Deus (aponta para cima) sabem o que é sair de noite, voltar quase de noitinha de novo, e vir de mãos abanando. Só ele...", afirmou.

Longa pausa, de choro mal contido, mas continua:

"Tá vendo o mar? Porque eu vejo. Porque o mar é minha vida, de nóis tudin aqui. O mar é... Como se diz, é a mão de Deus, que vai, vem, vai, vem... Mas o mar não é só a água não. É a areia também. É nós... Nunca saí daqui, nem tenho vontade. Meus meninos já pensaram, já foram, já vieram, foram de novo, mas tão tudin aqui. Porque se aqui a vida é difícil, imagina lá fora. Eu sou mais o mar. Tem dias que não tem, mas tem dias que tem. E assim a gente vai levando, com Deus por nós. Deus é ´a-mar´. Entendeu? Então o mar é o meio",

Ela me devolve a pergunta:

"E você, que vem lá da cidade, o que é o mar pra você?"

Sem saber o que dizer, só disse que "acho que o mar é este instante, dona Judite". Em seguida tiro uma foto, agradeço a conversa, e me despeço. Saio com os olhos começando a virar mar... (MJ).

CRÔNICA

Barcos que navegam na areia

Icapuí. Antes os barcos iam da terra para o mar, hoje fazem o caminho inverso. Saem das águas salgadas turvas de tanta guerrilha e sobem os morros de areia da incerteza. Repousam cambados em si mesmos, encalhados talvez para sempre no solo infértil para pesca. Barcos necessitam de mar para serem barcos, para serem meio de locomoção dos bravos homens do mar. Sem mar, apodrecem suas estruturas pesadas, caras e construídas para gerar riquezas, arreiam-se prostrados ali de frente para o mar.

Quando menino, tantas vezes corri descalço na areia quente para ver de perto "botarem os barcos na água". Tratores os arrastavam desde o centro até a praia. Era estranho aquele objeto imenso, sem vida, sem função, sem porquê, quando visto em terra firme. Era um monstrengo simétrico, geometricamente perfeito, feito por mãos encantadas de armadores artistas que davam forma as folhas de madeira vindas de tão longe que nem se dizia o nome do lugar. Juntava-se pregos, parafusos, motores, caixa de marchas, tinta, um nome talhado nas bordas e uma infinidade de cacarecos milagrosamente unidos. Nascia um barco.

O espetáculo do primeiro banho, da água salgada penetrando nas microscópicas frestas e sulcos da madeira, do primeiro balanço nas ondas, da incerteza da flutuação (sempre achava que aquilo nunca boiaria), era pra mim, menino, filho de pescador, o ápice de uma infância cercada de histórias de pescadores. O mar, além das riquezas que nos dava, exercia um fascínio inexplicável naqueles homens que viviam mais lá do que em terra.

A expressão nos rostos queimados pelo sol do mar (sol mais forte que o nosso) era comparável ao nascimento de uma vida, de uma nova vida. O pescador daquele tempo tinha uma ligação parental com o mar, como se corresse sangue salgado em suas veias. Havia um respeito e uma devoção à sua imensidão e à fartura que de lá se tirava. O mar era a sua vida.

Campo de batalha

Hoje, crescido que estou, não vejo mais alegria no rosto de nenhum pescador. Nem as águas do mar exibem a tranquilidade de outros tempos. Se transformou em território proibido, em campo de batalha. Há tempos que o mar não recebe de braços abertos nenhum barco. Não há mais germinação, não há criação, não há vida entre o mar e o pescador. Existe sim, disputa pelo o que se esconde inutilmente em seu fundo, pois de um jeito ou de outro, irão lá buscar.

Enquanto a ambição do homem o torna cego e apático, o mar vai secando. As águas continuam verdes, azuis, cinzas, negras, quem sabe até vermelhas, e o pescador se torna órfão de si mesmo. Não tem mais identidade, desaprendeu a pescar, a construir barcos, a ser pescador. Vejo muito deles abdicarem da vida que aprenderam a ter e se arriscam em terra firme, em trabalhos que não se encaixam em sua vida.

Vira um trabalho forçado. Em outros tempos, corria para ver os barcos caindo na água, hoje corro para bem longe, para não ver os barcos que tentam, desolados, navegar na areia.

Por Claudiomar Monteiro - Especial para o Regional
Jovem filhos de pescador e estudante em Icapuí. Gosta de escrever e fotografar

Fonte: Caderno Regional - Diário do Nordeste

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