segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Diário do Nordeste: Ventos e firmamento guiam jangadeiros no mar do Ceará




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11.9.2011
Ventos e firmamento guiam jangadeiros no mar do Ceará

Herança indígena, homens e mulheres se orientam nos elementos da natureza para desbravar o mar

São Gonçalo do Amarante. Jangadeiro é bicho esperto. Conecta-se com a natureza sem pedir licença à tecnologia. O mundo está mudado, mas se um dia, "que Deus o livre", as máquinas do homem pifarem, enquanto houver estrela no firmamento, lua, sol e vento, não tem problema que segure o pescador em terra ou o impeça de sair do mar. Antes de bússola, GPS, relógio e farol, já havia peixe e pesca, desafios nas tempestades do mar bravo. E já valia o conhecimento de cabeça, baseado na percepção dos cinco sentidos. 

Entregar-se à natureza para senti-la e entendê-la. Não fala em pontos cardeais, mas sabe muito bem usá-los para ir mar a dentro e voltar para o mesmo lugar. E sabe muito mais, onde tem mais e menos peixes, quando está perto ou longe de terra e de casa. Mas tem jangadeiro que diz que mora mesmo é no mar. E a vida em terra que é uma viagem de passagem.

"Onde tem chão não tem peixe". Seu Aldenor Miranda está dentro do mar, não enxerga um metro para dentro da água e sabe quando o fundo é "chão" (como ele se refere a areia) ou pedra. Onde tem pedra tem peixe. Ele pega um vergalhão (barra de ferro) e faz dele um "sassangar", com chama quando enche o ferro com sabão e afunda no mar com uma corda. Se voltam grãos de terra, não tem peixe. "Você pode passar o dia lá, mas vai só perder seu tempo", conta. 

Pescador não perde tempo, está a todo momento de sentido aguçado à procura dos bichos que "voam" na água, saltam na panela e fazem a mesa e a renda de milhares de famílias em mais de 500 Km de zona costeira cearense. Se escrevesse sobre os povos do mar, o escritor Euclides da Cunha ("Os Sertões") certamente diria que o jangadeiro é, antes de tudo, um forte.

E muito antes de Fernão de Magalhães encostar barcos na costa brasileira guiado pelas estrelas, há mais tempo essa era a técnica dos índios, e o conhecimento ainda atravessa gerações. Hoje mesmo, na Marinha do Brasil, afora toda a tecnologia, se tudo der uma pane, é o conhecimento do sol, de dia, dos astros e estrelas (à noite) e dos ventos e direção das marés a qualquer hora que vai fazer os filhos da terra voltarem do mar.

Com 63 anos de idade e quase isso de pesca, Aldenor Miranda dos Santos vai menos para o mar. Mas se vai, não se perde. Sempre foi acostumado à pescaria de dormida, aquela de ir e não voltar no mesmo dia (se volta no mesmo dia, chamam pesca-de-ir-e-vir). De dia, enquanto o sol banha sua pele encouraçada, o pescador olha para a própria sombra para saber a hora - e diz saber a diferença entre 14h e 15h30. De noite, lua e estrelas dizem mais: a hora e o lugar. 

Porque quando já tem um tempo que o sol se pôs, e o jangadeiro está no mar, tem uma estrela que lhes orienta que mudou o dia. É a "estrela da meia-noite". "Ela fica mais forte quando está perto de amanhecer, e vai se aproximando do sol", conta. Mas o pescador sabe que o movimento de rotação da terra (em torno de si mesma) e de translação (em torno do sol) muda a posição dos astros no firmamento. "Então tem outras, o cruzeiro-do-sul também ajuda a gente a se localizar".

Ventania
E se tem coisa importante e traiçoeira ao mesmo tempo é o vento. É ele quem movimenta o barco a vela mar a dentro. Mas é um perigo se deixar levar pelo ventania, "é capaz de ir pra não voltar". Por que se na hora de voltar para terra, o vento ainda empurrar ainda mais para o mar, é preciso ter destreza: posicionar a vela de modo a percorrer ao menos em linha paralela ao litoral, até encontrar o melhor momento. Mas como estar há uns 30 Km da terra e ainda assim saber para que lado ela está, seu Aldenor? "Você tem que olhar para o mar, o movimento das águas e das marés. A maré só vai na direção da terra". 

O pescador Gracindo de Oliveira, de Icapuí, tem GPS. Uma ferramenta inventada pelo homem que o ajuda a se localizar no planeta. Joga o manzuá no mar, para no dia seguinte encontrar lagostas engaioladas, mas não vai embora sem antes marcar a localização no equipamento. "Mas depois do ´Pai-Nosso´, a oração que o meu pai me ensinou foi ´meu filho não se perca no mar´", conta. Então ele sabe da importância dos astros e estrelas. E da lua também. "Lua nova, lua cheia, a maré sobe, lua crescente, a maré está menor, dizem que com um quarto de vazante. Mas para seu Gracindo não tem teoria que substitua estar na hora ali no mar. Uma hora observar uma coisa pode levar ao erro, então você tem que observar vários aspectos ao mesmo tempo. Tem que ter sapiência", conta.

Aldenor Miranda é natural de São Gonçalo do Amarante, e até os 43 anos passava mais tempo no mar que em terra. Pescava entre Iguape e o porto do Mucuripe. Admite que já se perdeu no mar "uma vez perdida", quando ainda aprendia as técnicas da natureza. Por sua destreza foi convidado a participar do Encontro dos Povos do Mar, realizado pelo Sesc na Praia de Iparana, no final do mês de agosto. Aprendeu com o pai, que aprendeu com o avô o que lá em tempos remotos foi aprendido com os índios. Diz que nasceu para trabalhar no mar, mas quando a esposa pariu seu único filho homem pediu a Deus que ele não fosse pescador. E não foi. Fez concurso para marinheiro, mas antes de ser chamado entrou para a Polícia Militar, trabalha na mesma cidade em que mora o pai. "Tudo o que eu tenho eu devo ao mar, mas só quem vive lá conhece os desafios do mar". 

Experiência de vida
Eduardo Luís da Costa
81 anos

Pescadores mais velhos, que foram ao mar bem antes das novas tecnologias chegarem às suas praias, defendem que a melhor ferramenta do homem é o conhecimento da natureza. Eduardo Luís da Costa tem 81 anos e ainda pesca no mar de Aracati. Usa os conhecimentos sobre ventos, fenômenos naturais nos meses do ano, a posição das estrelas e as fases da lua para se guiar.

MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER

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